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"OS TAMBORES DO PASSADO" (TOUROU E BITTI) Dia 11 de março de 1971...
após 3 anos de penúria...
os moradores do vilarejo de Simiri, no Zermaganda do Níger...
organizaram uma dança de possessão, para pedir ao espírito da floresta...
proteção contra o ataque de gafanhotos nas futuras colheitas.
No dia15 de março, Daouda Sorko...
filha do sacerdote Zima Daouda Siddo...
chamou-nos para assistir ao quarto dia da cerimônia...
convocada pelos tambores arcaicos Tourou e Bitti.
No fim da tarde, nenhum dançarino havia sido possuído, e decidimos...
o engenheiro de som, Moussa Hamidou, e eu, na câmera...
filmar um plano com cerca de 1O minutos...
para ter um documento filmado, em tempo real...
dos tambores que, dentro de pouco tempo, iriam se calar para sempre.
Assim foi feita esta experiência de cinema etnográfico na1ª pessoa.
UM FILME DE JEAN ROUCH
Entrar em um filme ê mergulhar na realidade...
estar, ao mesmo tempo, presente e invisível...
como às 4 h da tarde...
quando acompanhei o Zima Daouda Siddo...
que nos esperava na entrada das suas terras.
Passamos pelo cercado de carneiros e cabras ritualísticos...
que, algum dia, serão sacrificados aos espíritos, cujas vestes...
são pretas, brancas ou vermelhas.
Passamos ao lado do galpão onde ficavam os "cavalos dos espíritos".
No meio do terreno, na frente da orquestra...
o velho Sambou Albeidou, do vilarejo de Simiri, dança.
Ele está dançando há 4 horas, e nada aconteceu.
Lentamente, nós o seguimos, passo a passo...
e nos aproximamos da orquestra de Tourou e de Bitti.
Ao redor do violonista Godiê Kaina, do vilarejo de Zalizê...
três batedores de tambores...
mantêm o ritmo dos batedores de Tourou...
enormes tambores feitos de pele de carneiro.
Sambou saúda o violonista e, atrás dele, vejo o tocador de Bitti...
o comprido tambor de tons graves, cuja pele coberta de tutano...
ê ornamentada de pêrolas que levarão...
a música ritualística diretamente aos ouvidos dos deuses.
E, de repente, a orquestra silencia.
Deveríamos tambêm ter interrompido a filmagem...
mas sabíamos que alguma coisa, com certeza, iria acontecer.
Um tocador de Tourou assoa o nariz.
Chego perto do tocador de Bitti, e ele grita:
"A carne, a carne! Kourê, a hiena! Eis a carne. Hiena, ê Dodo."
E, agora, não ê mais Sambou Albeidou, o agricultor de Simiri...
ê Kourê. Kourê, a hiena, o espírito dos Haousa.
Kourê caminha lentamente, enquanto uma mulher...
Tousinyê Wasi, da aldeia de Simiri, vem dançar na frente da orquestra.
"Agora, eu sou o espírito Kourê, que se aproxima de Daouda Sorko."
"Carne, carne. Kourê, a saída não ê para você."
"Quero ir embora", diz Kourê.
"Eis a carne, eis a faca. Queremos ervas, apenas ervas, Kourê."
Ou seja, boas colheitas. "Ervas, ervas, ê isso o que queremos."
"Quero ir embora", responde Kourê, que caminha em direção à orquestra.
A velha Kumbao, de Simiri...
sacerdotisa dos espíritos das colheitas, saúda Daouda Sorko:
"Feiticeiro, filho de feiticeiro, antepassado de feiticeiro...
o seu poder ê mais forte do que o dos marabutos."
"Eu não comi", diz Kourê.
"É mesmo? Você não comeu?"
E, de repente, Tousinyê Wasi ê possuída.
Ela grita...
e deixa de ser a dona de casa de Simiri...
e transforma-se em Hadio, a prisioneira irada.
Os meninos e meninas das escolas vieram ver...
como a mãe, o pai, as avós e avôs dançam.
"A saída não ê para você, Kourê." "Quero carne, agora mesmo."
"Ele quer sangue. Quer uma cabra."
Uma mulher tranqüila aproxima-se de Hadio...
e coloca um "pagne" na sua cintura.
Os deuses, agora, estão diante da orquestra.
"Eis a faca, eis a carne, Kourê, a saída não ê para você."
E Daouda Sorko asperge os deuses e a orquestra com o perfume Haousa.
Pai de feiticeiro, avô de feiticeiro.
Os deuses, agora, esperam os sacrifícios.
E eu deveria ter continuado a filmar, mas quis fazer um filme...
voltar ao início da minha história, e me distanciei lentamente...
para ver o que viam as crianças das escolas.
Esta pequena praça do vilarejo, com os úItimos raios de sol...
onde, durante uma cerimônia furtiva...
os homens e deuses falavam sobre as colheitas futuras.
legenda ripada por davidonato Movimento Cinema Livre