<i>Por que há dois anjos com Franz?</i> <i>Que brincadeira é essa?</i>
<i>Onde já se viu dois anjos</i> <i>andando com um homem...</i>
<i>na Alexanderplatz, Berlim,</i> <i>em 1928...</i>
<i>e logo com um</i> <i>assaltante e cafetão?</i>
<i>Essa história de Biberkopf...</i>
<i>e de sua existência</i> <i>difícil e verdadeira...</i>
<i>já está bem adiantada.</i>
<i>Quanto mais Franz resiste...</i>
<i>mais claro tudo se torna.</i>
<i>Está chegando o momento</i> <i>em que tudo será esclarecido.</i>
Veja, ele tem um braço falso.
Ele não entrega os pontos.
Não quer ser reconhecido.
Sr. Biberkopf.
Quanta coisa já não fez esse cavalheiro!
É um facínora.
Ele deveria pegar prisão perpétua.
Matar uma mulher, roubar...
e ter outra mulher! Ele também tem culpa.
-O que ele quer agora? -O que você acha, Sarug?
O que aconteceria se deixássemos as coisas por conta dele?
Não faria diferença alguma.
-Acha que somos desnecessários? -Acho que sim. Um pouco.
Porque que não podemos tirá-lo daqui.
Se tirássemos esse homem daqui...
e o colocássemos em outro lugar, em outra existência...
-ele já fez tudo que podia aqui? -Não sei.
Mas esse é um homem bem comum. Não vejo por que protegê-lo.
Comum, incomum! Como assim?
Um mendigo é comum? Um homem rico é incomum?
O rico amanhã será mendigo e vice-versa.
Ele se incha todo.
Banca o inocente...
banca o decente. Olhem bem para esse verme.
Mas se vier um guarda...
aí ele vai ver!
Por que um homem desses deveria continuar vivendo?
Eu também morri. Era mais jovem que ele...
e já estava morta. Nem podia mais dar um piu.
Tire o chapéu, seu idiota. Você não é jornalista.
Seu otário.
Você nem conhece o seu alfabeto. Espere só até o pegarem.
Deixem-no em paz. Ele é maluco.
Ele tem um parafuso a menos.
Vejam! Ele anda com dois anjos.
E sua amada é um cadáver na delegacia de polícia.
Ele não tem mais nada.
Não se sai gritando por um sujeito desses.
Minha vida acabou.
Acabou! Para mim, chega.
Que cidade é essa?
Que cidade enorme é essa?
E que tipo de vida...
eu levei nela?
Mas eu não matei a Mieze.
Eu não fiz isso.
Não sei...
como tudo aconteceu.
Ela chamou por você quando morreu.
Ela já deve ter chegado aqui.
Chegamos aqui mais rápido do que se pensa.
''Não posso mais viver.
Dêem lembranças a meus pais e meu filho.
Minha vida é um tormento. Só Reinhold me tem na consciência.
Que se divirta!
Ele me usou como uma bola de futebol.
Um grande sem vergonha!
Ele foi responsável pela minha desgraça.
Estou arruinado''.
-Minha Mieze está aqui? -Não fique triste.
Você não pode ficar triste.
Mas onde está a minha pequena Mieze?
Meu filho, o que o preocupa?
Diga logo o que o preocupa.
Eu só queria ver a Mieze. Mais nada. Só estava passando.
Veja, eu já morri.
Não se pode levar a vida tão a sério. Nem a morte.
Podemos tornar tudo mais fácil para nós.
Quando eu estava doente, o que foi que eu fiz?
Você acha que eu ia esperar? Para quê?
Coloquei o frasco de morfina do meu lado.
Então, eu disse: ''Aumentem a música!
Piano, jazz, sucessos''.
Pedi que me lessem Platão.
''O Banquete''.
Um belo diálogo, não?
Enquanto isso, debaixo da coberta...
eu me aplicava uma injeção atrás da outra.
Eu contei.
O triplo de uma dose mortal.
E o tempo todo eu ouvia o tilintar do piano.
É engraçado.
E o meu narrador falava de Sócrates.
Há gente inteligente...
e gente não tão inteligente.
Venha depressa! Corte-o!
Ele não quer ficar no seu túmulo.
Ele sempre sobe nas árvores e se pendura.
É mesmo? Mas por quê?
Esteve doente muito tempo. Ninguém pôde ajudá-lo.
Diziam que ele estava fingindo.
Então, ele foi para o porão com um prego e um martelo.
Eu o ouvia martelar e pensava: ''O que ele está fazendo?
Que bom que está trabalhando e não parado sem fazer nada''.
Talvez esteja construindo uma casinha de coelho''.
Mas ele estava pregando um prego bem grosso no teto.
Queria que agüentasse.
O que foi? Você está bem? Aconteceu alguma coisa?
Por que esta chorando?
Também quer se matar?
Não.
Mataram minha namorada e não sei onde ela está.
Procure lá atrás, onde ficam os novos.
Por que não pode ficar no chão?
Por que tem sempre que subir nas árvores?
<i>Em Berlim, em 1927,</i> <i>morreram 42.742 pessoas...</i>
<i>sem contar os natimortos.</i>
<i>4570 de tuberculose...</i>
<i>6443 de câncer...</i>
<i>5656 do coração...</i>
<i>4818 de problemas</i> <i>circulatórios...</i>
<i>5140 de derrame cerebral...</i>
<i>2419 de pneumonia...</i>
<i>961 de coqueluche...</i>
<i>562 crianças de difteria...</i>
<i>123 de escarlatina...</i>
<i>93 de sarampo...</i>
<i>e morreram 3640 bebês.</i>
<i>Nasceram 42.696 pessoas.</i>
Mieze.
Mieze!
O que foi que fizemos?
Por que fizeram isso com você?
Você não fez nada, Mieze.
Este homem aqui...
por mais comum que tenha sido seu caminho na vida...
difere dos demais por um único aspecto.
O que será que o torna diferente das pessoas comuns?
Você disse que ''comum'' e ''incomum'' são palavras destituídas de sentido.
Esse homem perdeu a oportunidade de tornar-se adulto, Sarug.
Mas agora ele está bem perto.
E todos...
que sofrem desse raro infortúnio...
têm a tendência, quando estão em vias de ver e de sentir...
de ter essa revelação e logo morrerem.
Esse tremendo esforço cansou seu corpo e sua alma, entende?
Entendo, mas se salvarmos sua vida...
exausta em corpo e alma...
que tipo de vida seria?
Só algo comum.
Então por que nos preocupamos tanto com isso?
A quem interessaria manter uma vida assim?
Esse é justamente o segredo.
Você também não sabe, Sarug...
como se tornou o que é agora.
Como você era...
e como foi acabar comigo, protegendo outras pessoas.
Sim, Terah, isso não sei mesmo.
Nunca se é forte por si mesmo...
por si só.
É preciso ter passado por alguma coisa.
A força tem que ser conquistada.
Você não sabe como a consegue.
E agora está aí...
e as coisas que são mortíferas para os outros, não lhe ameaçam.
Mieze.
Mieze, o que posso fazer?
Por que também não me jogam num túmulo desses?
Quanto tempo terei que prosseguir?
<i>Mais uma vez</i> <i>Entrando nos campos</i>
<i>O poder de Deus nos guiará</i>
<i>Lutando por ele</i> <i>Não iremos nos render</i>
<i>Até vencermos a luta do Senhor</i>
<i>Quem ora</i> <i>E tem fé no poder de Deus</i>
<i>Pode contar com a vitória</i>
<i>Nas trevas</i> <i>E na noite</i>
<i>Sua alma será pura e livre</i>
<i>Se Satã quer violar minha alma</i>
<i>Ainda assim não temerei</i>
<i>Pois Deus será</i> <i>Minha meta constante</i>
<i>E a Ele reverenciarei</i>
<i>Quem ora</i> <i>E tem fé no poder de Deus</i>
<i>Pode contar com a vitória</i>
<i>Nas trevas</i> <i>E na noite</i>
<i>Sua alma será pura e livre</i>
Lüders.
Você foi o primeiro canalha.
O primeiro canalha, pérfido, imundo.
Foi você que começou minha destruição...
que começou a me corroer...
a me arruinar.
Foi com você...
que tudo começou.
Já é 22 de novembro. Quer se resfriar?
Não prefere ir ao seu bar predileto e tomar uma bebida?
Entregue Reinhold.
Você deveria estar num hospício, seus nervos estão abalados.
Ele deve aparecer, o verme. Aquele cão tarado.
Ou será que não tem coragem para sair?
A quem você chama se ele não responde?
Chama alguém que não está aí.
Ninguém é louco de se esconder onde possam achá-lo.
Polícia!
Ei! Polícia! Polícia!
Meu Deus, Franz!
-O que está fazendo aí no chão? -Por quê?
A cidade inteira lhe procura.
É um milagre que não tenham lhe achado.
Conseguiu alguma coisa?
Não posso fazer nada.
Mas tenho que agüentar.
Ele pode me destruir.
Ele matou a moça...
e eu aqui, feito um idiota.
Acreditamos em você, Franz. Acreditamos.
Tanto vai o jarro à fonte que acaba quebrando.
Já agüentei o bastante.
E fiz também. Não posso mais.
Ninguém pode dizer...
que não me defendi.
Mas o que é demais é demais.
Como não posso matar Reinhold, matarei a mim mesmo.
Vou para o inferno...
ao som de tambores e trombetas.
-Este é o homem. -Iremos para o inferno...
ao som de tambores e trombetas.
Não queremos mais nada com este mundo.
Ele pode ir à merda com tudo.
Com tudo que houver em cima...
com toda a humanidade...
com os homens, as mulheres, e suas luzes infernais.
Não se pode confiar em ninguém.
Se eu fosse um passarinho, pegaria um monte de merda...
e jogaria para trás e voaria embora.
SE EXISTE UM DEUS, SOMOS DIFERENTES DELE...
NÃO APENAS POR NOSSA BONDADE OU MALDADE.
TODOS TEMOS OUTRA NATUREZA E VIDAS DIFERENTES.
DIFERIMOS EM MANEIRA...
EM NOSSO PASSADO E EM NOSSO FUTURO.
O que há, Andrej?
Estou com vergonha.
Não entendo. Por que se envergonha?
Por sua causa.
Por minha causa?
Como assim?
-Porque te amo. -Mas isso é bobagem.
Aqui, isso é normal.
Aqui, nós nos amamos.
Lá fora, as coisas são diferentes. Você esquece tudo.
Pois é isso.
Por mim...
por mim pode ser normal para todos aqui.
Para todos...
mas não para mim.
Para mim...
-não é normal. -Que bobagem, Andrej.
É porque esta é sua primeira vez aqui.
A maioria sente isso.
Se envergonham no começo.
Mas quando saem...
e tudo volta a ser como antes, elas dão risada.
E dizem: ''Nós nos divertimos um pouco lá dentro''.
Melhor que nada, entende?
O problema não é esse.
Tem mais uma coisa.
A minha vida inteira...
fui louco pelas mulheres.
Ao mesmo tempo, me cansava e não sabia como me livrar delas.
E sempre sofri...
por não poder suportá-las...
e porque elas não iam embora.
A minha vida inteira.
E agora, quando penso...
que você será solto e eu ficarei aqui...
é a primeira vez...
que não me entendo.
Eu simplesmente não me entendo.
Quando você for solto depois de amanhã...
então...
Antigamente, isso era bem diferente.
Completamente diferente.
Devo ficar aqui mais quatro anos...
e por uma besteira.
E o que são quatro anos?
E ainda mais sem você.
Eu nem saberia onde arranjar uma bebida hoje.
Estou perdido.
Quando estiver aqui um pouco mais...
vai aprender todos os macetes e não vai lhe faltar bebida.
Eu não quero, não quero! Eu não posso suportar.
Eu não posso viver assim.
E ainda tem aquele polonês sujo!
Eu não vou agüentar.
Andrej, o que ele queria afinal?
Não importa.
Não faz mais diferença.
Como eu poderia saber?
Meu Deus, que iriam ser quatro anos!
Nunca pensei que...
eles me dariam quatro anos.
O que é que você tem...
com aquele polonês?
Você também é polonês.
O que tem contra ele?
Não sou polonês.
É isso que ele queria saber de mim.
Saber que não sou polonês.
Não consigo entender.
Pensei que seu nome fosse Andrej Moroskiewicz.
Isso é polonês, não?
Aí é que está.
Meu nome não é Andrej Moroskiewicz...
nem nada do gênero.
É isso.
Agora ele quer me chantagear...
até eu me submeter.
Ele quer me espremer como um limão.
Ele me tem nas mãos.
Por que tem passaporte polonês se esse não é o seu nome?
Meu Deus!
Por que tenho um passaporte desses?
Simplesmente...
porque eu quis ser esperto.
Fui até o ponto do bonde, arranquei a bolsa de uma mulher...
e deixei que me prendessem. Quando estava no tribunal...
descobri que o passaporte pertencia a um homem procurado.
Eu te amo tanto.
Mesmo que não seja uma mulher, gosto de lhe tocar.
Você tem uma pele tão macia!
Vou morrer quando você for embora.
Estou acabado.
Continuo sem entender a história do seu nome.
Meu Deus.
É muito simples.
Matei uma moça.
Você me ouviu?
Eu a matei.
Não me olhe assim. Por favor.
Eu não queria.
Aconteceu e pronto.
Venha aqui.
Venha.
HAVIA UMA RECOMPENSA DE 1OOO MARCOS...
PELA CABEÇA DE REINHOLD.
O QUE FAZER?
FICAR DESEMPREGADO...
E PENSAR O TEMPO TODO NESSES 1OOO MARCOS?
ENTÃO ELES O PEGARAM E O COLOCARAM NUMA CELA DE PRISÃO.
DA MORTE DE UMA CRIANÇA...
E DO NASCIMENTO DE UM SER HUMANO ÚTIL.
-O que houve? -Está ferido.
Temos que levá-lo para o hospital.
Bobagem.
É melhor acabar logo com ele.
Vamos atropelá-lo mais vezes e depois o jogamos numa vala.
<i>Na prisão desconfiam primeiro...</i>
<i>que Franz está fingindo</i> <i>ser louco...</i>
<i>pois sabe que sua cabeça</i> <i>está em jogo.</i>
<i>Então, o médico examina</i> <i>o preso...</i>
<i>e o leva para Moabit.</i>
<i>Mesmo assim não arrancam</i> <i>uma palavra dele.</i>
<i>O homem parece mesmo louco.</i> <i>Ele fica imóvel...</i>
<i>quase sem piscar.</i>
<i>Quando recusou comida</i> <i>por dois dias...</i>
<i>levaram-no para o</i> <i>hospício em Buch.</i>
<i>O homem precisava</i> <i>ficar sob observação.</i>
Não! Não!
Ela está junto à água, a Babilônia...
a mãe da putaria e dos horrores da Terra.
Está sentada sobre um bicho de 7 cabeças e 1O cornos.
Que visão! Cada passo seu a alegra.
Ela bebeu o sangue dos santos que ela dilacerou.
Ela dá chifradas.
Ela vem do abismo e leva à condenação.
Olhe para ela! As pérolas, a cor púrpura, o escarlate...
os dentes, como os mostra! Seus lábios grossos.
Sangue correu por eles, sangue que ela bebeu.
Puta Babilônia, olhos amarelo-dourados...
pescoço inchado, vejam como ela ri!
<i>No início, puseram Franz</i> <i>na sala de observação...</i>
<i>pois ele sempre ficava nu</i> <i>e arrancava a camisola.</i>
<i>Foi o único sinal de vida</i> <i>que ele deu em semanas.</i>
<i>Mantinha os olhos</i> <i>bem fechados.</i>
<i>Jazia duro e negava</i> <i>qualquer comida...</i>
<i>de forma que tiveram</i> <i>que alimentá-lo à força...</i>
<i>com leite e ovos...</i>
<i>e um pouco de conhaque.</i>
Assim já é demais. É quase invasivo, não?
Ele tem que aprender.
-É nisso que dá. -É, é nisso que dá.
Von Hardenberg, abra!
Não entendo, Biberkopf.
Por que não nos deixa ajudá-lo?
Eu só quero ajudar.
Von Hardenberg, abra!
Homem, abra os olhos.
Eu sei que pode me ouvir.
Também estou fingindo.
Lar doce lar...
sabe?
Doce lar, para mim, é debaixo da terra.
Se não estou em casa...
é para baixo da terra que quero ir.
Os microcéfalos...
querem me transformar num troglodita.
Num homem das cavernas.
Querem que eu more nessa caverna.
Sabe o que é um troglodita?
Somos nós.
Acordem!
Malditos desta terra...
obrigados a passar fome.
Como vítimas, vocês caíram na luta...
pelo santo amor do povo.
Vocês deram tudo pelo povo...
pela vida...
pela felicidade e pela liberdade.
Estes somos nós. Homem!
Você não entende? Somos nós.
Em salas magníficas, o tirano se regala...
afogando sua ira em vinho.
No entanto, uma mão anota sinais de aviso há muito tempo...
na louça suntuosa.
Eu sou autodidata.
O que aprendi foi por conta própria na prisão.
Agora eles me trancam aqui.
Eles tiram a voz do povo.
Eles me consideram altamente perigoso.
Sim, isso eu sou mesmo.
Sou um livre pensador.
Isso eu posso dizer.
Você me vê aqui sentado.
Sou o homem mais sossegado do mundo.
Mas que não venham me irritar!
Chegará a hora...
em que o povo despertará.
Um povo poderoso, forte e livre.
Por isso, descansem, irmãos.
Nobre e grandiosamente...
vocês se sacrificaram por nós.
<i>Acho que a doença de</i> <i>Biberkopf é psicogênica.</i>
Sua imobilidade tem origem na mente.
Seu estado patológico advém de inibições e repressões...
que uma análise esclareceria.
Talvez numa regressão aos primeiros graus se...
''Se''. O grande ''se''.
O lamentável ''se''. Uma pena.
Mas esse ''se'' é um problema.
Se Franz Biberkopf falasse...
se sentasse conosco...
e cooperasse conosco para eliminarmos seu conflito.
Agora vai achar que a paralisia é psicológica...
e que as espiroquetas são piolhos do cérebro.
A alma! A alma! Ó moderna caixa de sentimentos!
Medicina nas asas do canto.
No seu lugar...
eu tentaria eletricidade.
Isto também não ajuda muito.
Mas é melhor que essa conversa fiada.
No fundo, isso também é bobagem.
Uma corrente baixa não adianta nada.
Se usar uma alta voltagem, aí sim.
Isso já se sabe da guerra.
Tratamento de alta voltagem! Meu Deus!
Aqui não é permitido. Chamam isso de tortura moderna.
Está bem.
O que acha que deveríamos fazer...
num caso como o de Franz Biberkopf.
Primeiro, faz-se um diagnóstico. Se possível, correto.
Com uma perna quebrada, faz-se o que quiser.
Pode tocar piano que não vai adiantar.
É preciso colocar o osso no lugar.
É a mesma coisa com um calo.
Aí é preciso passar uma loção...
ou que se compre botas melhores.
O segundo é mais caro, mas mais eficaz.
O que devemos fazer então?
Eu pergunto mais uma vez...
-qual é a sua opinião, Dr. Proll? -Você acabou de ouvir.
Fazer o diagnóstico correto. E nesse caso...
segundo meu diagnóstico superado...
é estupor catatônico.
A menos, é claro, que haja uma causa orgânica.
No cérebro. Um tumor no cérebro.
Estupor catatônico.
Sim. Ele está deitado nessa rigidez...
os suores repentinos...
depois as piscadelas ocasionais.
Ele nos observa muito bem.
Mas ele não diz nada.
Ele também não come.
Mas, por fim, o grande dissimulado...
ou o psicogênico vai cair de costas.
Morrer de fome? Ele não chegará a esse ponto.
E de que serve esse diagnóstico para ele?
Não ajuda em nada.
O que você tem a dizer, como médico?
Ele já teria aproveitado a chance se fosse uma questão psicológica.
Quando um preso tão teimoso...
vê que chega um jovem que não sabe nada dele...
e quer curá-lo rezando...
para ele o senhor é um prato feito.
O que ele fará depois, teria feito há muito tempo.
Sabe, amigo, se o moço tivesse capacidade de avaliação...
É justamente isso. Ele está inibido.
Na minha opinião, isso é resultado de algum bloqueio...
causado por fatores mentais.
A perda de contato com a realidade por uma decepção, negação...
e, então, impulsos infantis rumo à realidade...
tentativas infrutíferas de reatar o contato com ela.
Bobagem. Momentos de alma.
Então, ele teria outros momentos de alma.
Ele superaria o bloqueio e as inibições...
e os daria de presente de Natal para você.
Em uma semana, ele estaria de pé. Que grande curandeiro você é!
Louvada seja a nova terapia!
Mande um telegrama de elogios ao Dr. Freud.
Uma semana depois, estará passeando pelo corredor.
Milagre, Milagre! Aleluia!
Uma semana a mais e ele está no pátio.
Mais uma semana e ele foge...
sem você perceber. Aleluia. E fim da história.
Não entendo. Seria bom tentar mais uma vez.
-Não acredito nisso. -Eu acredito.
Você ainda vai aprender.
Você precisa ter experiência.
E não continue a expor o sujeito ao sofrimento.
Acredite em mim, isso não adianta.
''Quem deixa tudo nas mãos de Deus...''
<i>E o hospital inteiro</i> <i>só faz perguntar...</i>
<i>''Que injeção</i> <i>o Franz vai tomar hoje?''</i>
<i>Eles riem nas costas</i> <i>dos médicos...</i>
<i>porque nada adianta</i> <i>para ele.</i>
<i>Nada resolve,</i> <i>ele é um osso duro.</i>
<i>Ele é um dos mais duros.</i> <i>Eles vão ver.</i>
<i>Ele sabe o que quer.</i>
Quem é esse dissimulado?
Franz Biberkopf, um fedido.
Um convencido.
Ele deve estar esperando a neve cair...
e depois ele vai pensar que fomos embora.
As coisas que ele pensa.
Um sujeito desses nem sabe pensar.
Ele não tem cérebro...
na cabeça.
Só quer ficar deitado e ser teimoso.
Vamos dar um jeito nele.
Temos ossos de ferro.
Desamarre-o.
Mais um gol.
Rasgo no gol.
Cuidado!
Não, não é um gol. É um buraco vazio.
Que confusão.
Acalmem-se, senhores.
Esse sujeito não merece.
Nada mais vai lhe acontecer.
Ele quase já não tem carne nem gordura.
Ele logo estará frio.
Já estão colocando bolsas de água quente em sua cama.
Eu já tenho até o sangue dele.
Ele só tem um pouco.
Assim ele não poderá mais se dar ares de importante.
É como eu digo.
Acalmem-se...
senhores.
Por favor, façam para mim...
Façam para mim...
um buraco na parede...
para que eu possa fugir...
para o fim do mundo.
O ser humano é um animal feio...
o inimigo dos inimigos...
a criatura mais abominável que existe na Terra.
Não é bom viver no corpo de um homem.
Prefiro me encolher sob a terra...
correr sobre os campos...
e comer o que encontrar.
O vento sopra...
e a chuva cai.
E o frio vem e se vai.
Isso é melhor...
do que viver no corpo de um homem.
Logo terão conseguido.
Continuem assim.
Logo o buraco estará grande o suficiente...
para que eu possa sair...
para que eu possa sair da minha pele.
Mieze.
Franz, acredite em mim.
Eu não queria.
Ele se jogou em cima de mim...
e disse que eu devia rezar.
E de repente...
Acredite em mim, Franz. Por que eu iria mentir para você?
Por favor, acredite em mim!
Franz!
Franz!
Espere!
Franz, por favor! Por favor!
Deixe-me explicar.
Franz.
Junto à água está sentada a grande Babilônia...
a mãe da putaria e dos horrores.
Está sentada num bicho escarlate de 7 cabeças e 1O cornos...
Por favor.
Por favor, por favor, por favor.
Hoje, não.
Hoje não.
Detenha-a!
Detenha-a!
Ela está embriagada pelo sangue dos santos que dilacera.
Ela vem do abismo e leva à condenação.
<i>A morte canta uma</i> <i>canção lenta, lenta.</i>
<i>Está na hora de eu</i> <i>aparecer para você...</i>
<i>pois as sementes já voam pela</i> <i>janela e você sacode o lençol...</i>
<i>como se não fosse</i> <i>mais deitar.</i>
<i>Não sou apenas um ceifeiro.</i> <i>Não sou apenas um semeador.</i>
<i>O que importa é estar aqui...</i>
<i>e preservar.</i>
Ah, sim.
Ah, sim. Ah, sim.
<i>Estou aqui e devo registrar.</i>
<i>Aquele que está deitado aqui...</i>
<i>e abandona sua vida</i> <i>e seu corpo...</i>
<i>é Franz Biberkopf.</i> <i>Onde quer que ele esteja...</i>
<i>ele sabe para onde vai</i> <i>e o que quer.</i>
É sem dúvida uma bela canção.
Mas você consegue ouvi-la?
E o que você quer dizer isso?
É a morte cantando?
Só quero dizer a verdade...
a mais pura verdade.
E essa verdade é...
que Franz Biberkopf pertence à morte.
Esta morte. E ele a ouve cantar.
Cantando como um gago...
em repetições constantes, como um serrote na madeira.
Estou aqui para registrar, Franz Biberkopf. Você quer vir a mim.
Você tem razão, Franz, em vir para mim.
Como pode um homem prosperar...
se ele não procura a morte? A morte verdadeira, a morte real.
Você se preservou a vida toda. Preservar, preservar...
Esse é o desejo temeroso do ser humano.
Assim, tudo permanece como está e nada segue em frente.
<i>Quando Lüders o enganou, falei</i> <i>com você, pela primeira vez.</i>
<i>Você bebeu e se preservou.</i>
<i>Seu braço foi esmigalhado.</i>
<i>Sua vida estava</i> <i>em risco, Franz.</i>
<i>Admita, você não pensou</i> <i>um instante na morte.</i>
<i>Eu lhe enviei tudo,</i> <i>mas você não me reconheceu.</i>
<i>E quando descobriu</i> <i>quem eu era...</i>
<i>fugiu aterrorizado.</i>
<i>Nunca lhe passou</i> <i>pela cabeça se entregar.</i>
<i>E tudo aquilo</i> <i>a que se empenhou...</i>
<i>você agarrou com força...</i>
<i>e essa fixação...</i>
<i>não se arrefecia.</i>
<i>Isso não adianta.</i>
<i>Você mesmo viu.</i> <i>Não adianta nada.</i>
<i>Chega o momento</i> <i>em que nada mais adianta.</i>
<i>A morte não lhe canta</i> <i>uma canção suave...</i>
<i>e também não estrangula.</i>
Eu sou a vida...
e a verdadeira força.
Finalmente...
não quero mais me preservar.
Minha força é maior que a dos canhões.
Você não quer morar longe de mim.
Você quer se experimentar, se testar.
A vida não pode valer a pena sem mim.
Venha! Chegue mais perto de mim...
para que possa me ver...
para que veja como está no fundo do abismo.
Está tão escuro.
Não consigo ver nada.
Você não quer se aproximar de mim.
Então vou acender a luz para você.
Assim você encontrará o caminho.
Se não tiver coragem de vir no escuro, acenderei a luz...
para que possa vir a mim.
Franz está gritando.
Ele se arrasta e grita.
Ele grita a noite inteira. Ele está na marcha.
-Grita pelo dia afora. -Grita até de manhã.
Balance, caia, corte.
-Ele grita ao meio-dia. -Pela tarde afora.
Acho que ele está com sede.
Talvez não tenha sede alguma.
Balance, corte, corte. Balance, balance, corte.
Balance, corte.
Ele grita na noite. A noite vem.
Grita noite afora, Franz, na noite.
Estou sofrendo.
É bom...
que você sofra.
Não há nada melhor para você do que sofrer.
Não me deixe sofrer.
Acabe com isso.
Não adianta acabar.
Tudo acaba por si mesmo.
Mas está nas suas mãos. Acabe com isso.
Só tenho uma bola na mão.
Todo o resto está nas suas mãos.
O que está nas minhas mãos?
Acabe com isso.
Chegou a esse ponto. Estou aqui falando com você...
como um carrasco, e tenho que estrangulá-lo.
como a um animal venenoso.
Sempre o chamei. Incessantemente.
Acha que sou uma vitrola...
um gramofone a que dá corda quando tiver vontade...
aí eu chamo?
E quando cansa, pode me desligar?
É isso que pensa que eu sou?
Pense o que quiser.
Mas agora está vendo...
que as coisas são diferentes.
O que foi que eu fiz?
Não me torturei o bastante?
Não conheço uma só pessoa...
que sofreu como eu...
tão lastimavelmente...
-tão miseravelmente. -Você nunca esteve aqui.
Seu imundo.
Eu nunca vi Franz Biberkopf na vida.
E quando eu lhe mandei Lüders...
você não abriu os olhos.
Você não estava dobrado feito um canivete.
Você estava enchendo a cara.
Um aguardente atrás do outro. Só bebendo.
Eu queria ser decente.
Decente.
Mas ele me enganou.
Estou lhe dizendo.
Você não abriu os olhos.
Seu porco imundo. Você xinga vigaristas e vigarices...
mas não olha para as pessoas.
Não pergunta...
por que...
nem como.
Como pode julgar as pessoas...
se não tem olhos?
Você foi cego...
e atrevido.
O Sr. Biberkopf arrogante...
do bairro fino.
E que o mundo seja como ele quer.
Tudo é muito diferente, amigo.
Muito diferente.
Agora você pode ver.
Ele não dá a mínima para você, o mundo.
Quando Reinhold lhe jogou daquele carro...
você nem desmaiou.
Nosso Franz Biberkopf nem desmaiou.
E quando estava debaixo das rodas...
jurou que queria ser forte.
Nem disse a si mesmo: ''Pense bem.
Seja sensato''.
Não! Ele só disse: ''Eu quero ser forte''.
Você nem quer saber que estou falando com você.
Mas agora você me ouve, não?
Não percebi?
Por quê?
O quê?
E por fim Mieze, Franz.
Que vergonha! Que vergonha!
Diga ''Que vergonha!''. Grite!
Não consigo.
Não sei por quê.
Grite ''Que vergonha!''.
Ela veio até você. Foi carinhosa. Protegeu você.
Ela foi feliz com você. E você?
O que vale um ser humano para você?
Uma flor de pessoa. Você a levou lá...
e a exibiu para Reinhold.
Diante de você, no auge dos sentimentos.
Mas você só queria ser forte. Você ficou feliz...
em poder competir com Reinhold...
mostrar que era melhor.
Você a usou para provocá-lo.
Pense se você não teve culpa de ela estar morta agora.
E você nem derramou uma lágrima por ela!
Ela, que morreu por você.
Por quem mais?
Que conversa mole! ''Eu isso, eu aquilo. Como sofri.
Como sou nobre. Ninguém me deixa mostrar...
como sou fino e nobre''.
Diga ''que vergonha''! Grite: ''que vergonha''!
Não sei.
Você perdeu a guerra. Está liquidado.
Arrume suas tralhas. O jogo acabou.
Que imbecil!
Você ganhou uma cabeça, um coração, olhos e ouvidos...
e quer ser decente, seja qual for a sua noção disso.
E não vê nada, não ouve nada, não pensa.
Vive sem objetivo. Pode-se fazer o que quiser.
O que devo fazer então? O quê?
Diga-me o que devo fazer.
Não digo nada. Não fale comigo.
Você não tem cabeça.
Não tem ouvidos.
Você nem mesmo nasceu. Meu Deus!
Você nem veio ao mundo.
Seu monstro de idéias delirantes...
com idéias atrevidas. Papa Biberkopf!
Esse está por nascer ainda...
para que possamos ver as coisas como elas realmente são.
O mundo precisa de indivíduos diferentes...
mais esclarecidos...
que vejam as coisas como elas realmente são.
Que não são de açúcar...
mas sim, de açúcar e sujeira.
Tudo misturado.
Mas...
Passe para cá seu coração.
Franz, seu coração.
Para que seja seu fim.
Para que eu possa jogá-lo na sujeira...
-onde é o seu lugar. -Deixe-me refletir...
só mais um pouco.
Entregue seu coração, homem.
Só um pouquinho.
Seu coração, Franz.
Eu mesmo vou pegar seu coração.
Fora dessa salada de batatas!
Que bobagem é essa?
Isso não faz sentido. Não posso dar férias a ninguém.
Preciso de todos.
Fui claro? Não posso dar férias a ninguém.
Tenho muito para fazer aqui.
Vamos começar. Preciso de todos.
Quando alguém...
tem a palavra ''morte'' nos lábios...
ninguém mais pode arrancá-la.
Ela vai girar dentro da boca...
e será como uma pedra...
uma pedra pedregosa!
E dela...
não vai crescer nenhum alimento.
Assim...
morreram muitas pessoas. Para elas...
o caminho havia acabado.
Elas não sabiam...
que tinham que viver uma única dor para progredir.
Que apenas era preciso dar...
um pequeno passo...
para seguir em frente.
Mas elas não podiam dar esse passo. Elas não sabiam.
Era só uma fraqueza.
Houve um espasmo durante minutos...
alguns segundos e pronto! Elas já estavam...
num lugar onde não mais se chamavam Karl...
Wilhelm, Minna, Franziska.
Cheias, simplesmente cheias...
ardendo em brasa de raiva...
e paralisadas de desespero...
elas morreram.
Elas não sabiam que apenas precisavam...
arder de verdade...
para ficar...
moles novamente.
Meu Deus, uma moça tão jovem!
Ela vai se acostumar do outro lado.
É só ela ser boazinha...
e tudo vai dar certo.
E então?
Por toda parte, há casas...
onde as pessoas se aquecem...
se entreolham carinhosamente...
ou se sentam friamente lado a lado.
Espeluncas e bares imundos...
onde alguém toca piano...
sucessos antigos e, às vezes, recentes.
Conhece esse? Ramona.
Ali.
Aí está.
Disponha.
Mas não se incomode comigo. Mesmo.
Venha, vamos seguir em frente.
O que disse a morte?
Preciso saber o que ela disse.
Ora eu o conheço. Olá, Lüders.
Sim. Eu estava à espera dele.
Que homenzinho de nada...
-com cadarço de sapato. -''Sieg heil''!
''Sieg heil''!
O que foi o que ele fez?
Ele a roubou. Roubou de verdade.
E quando estava no bar, Lüders entrou...
me viu e saiu correndo.
O Max me deu uma carta dela...
e lá estava escrito tudo.
O que aconteceu comigo então?
Minhas pernas me foram cortadas.
Literalmente cortadas!
E eu perguntei: por quê?
Por quê? Por que não posso me levantar?
Mas o que há?
O que aconteceu de repente?
O que foi que eu disse?
Não posso mais mexer as pernas.
Simplesmente, não dá mais.
Não dá mais...
para movê-las.
Quer um conhaque, Sr. Biberkopf?
Está de luto?
Sim.
Uma perda pessoal?
Minhas pernas.
Cortaram minhas pernas. Não sei.
Tome.
Não vendia salsichas aqui?
Claro, foi assim que nos conhecemos.
Mas já faz tanto tempo!
Mas isso...
Digo...
Refere-se à suástica?
Agora eu a uso.
E com orgulho, Sr. Biberkopf.
O senhor também a usou, não?
Sim.
Eu a usei, uma época.
Mas você não me disse...
-que era judeu? -Com certeza.
Isso não quer dizer que eu deva tomar o caminho errado.
Agora estou no caminho certo.
Tenha um bom dia, Sr. Biberkopf.
Bom dia, Lüders. Como vai?
Na verdade, não me sinto bem.
Saúde.
Não fuja.
Volte aqui.
Sente-se nessa cadeira.
Não vá embora.
O que foi que eu fiz?
Não vá embora.
Que venha a noite...
ainda que seja profundamente negra.
Que venha a noite escura...
os campos sobre os quais a dura geada se deposita...
as estradas congeladas.
Que venham as casas de tijolo...
de onde emana a rósea luz.
Que venham os andarilhos gelados...
os cocheiros nas carroças de verdura...
rumo à cidade...
com seus cavalinhos na frente.
As vastas e lisas planícies mudas...
planícies grandes, planas e mudas...
por onde correm os trens expressos e de subúrbio...
derramando sua luz branca nos dois lados da escuridão.
Que venham as pessoas.
<i>Lá vem o chamado</i> <i>Como ronco do trovão</i>
<i>Como o tilintar das espadas</i> <i>Ondas batendo na margem</i>
<i>Descanse em paz</i> <i>Minha pátria amada</i>
<i>Descanse em paz</i> <i>Minha pátria amada</i>
<i>Orgulhosa e fiel</i> <i>Permanece a vigília</i>
<i>A vigília no Reno</i>
<i>Orgulhosa e fiel</i> <i>Permanece a vigília</i>
<i>A vigília no Reno</i>
Reinhold.
Reinhold!
Seu verme!
Seu verme. É isso que você é.
O que quer aqui? Dar uma de importante para mim?
Não há chuva que o lave...
seu pilantra.
Assassino!
Seu criminoso!
E bom que tenha vindo.
Senti sua falta.
Venha, seu nojento.
Ainda não o pegaram?
Cuidado para não ser preso!
O que há com você agora, Franz? O que você é agora?
-Não sou um assassino. -Quem me mostrou a menina?
Quem fez pouco caso dela?
E eu tive que entrar debaixo das cobertas.
Seu linguarudo, quem fez tudo aquilo?
-Não era motivo para matá-la. -E daí? Que diferença faz?
Você quase a matou de pancada.
E dizem que houve outra...
uma tal de Ida...
que agora já está no cemitério.
Dizem que não foi para lá sozinha.
E agora?
Não diz mais nada!
Que diz agora o Sr. Franz Biberkopf...
linguarudo profissional?
Você me jogou debaixo daquele carro.
-Aquilo foi você. -E daí?
Você é um tolo para cair no que eu digo!
Um tolo!
Ainda não percebeu o quanto você é tolo?
Você está em Buch, no manicômio...
e eu estou bem.
Quem é o tolo então?
Lute comigo.
Mostre quem é você...
Franz Biberkopf!
Pequeno Bibermenino.
Por que me envolvi tanto com você?
Vamos!
Mostre-me quem você é.
Você tem força?
Eu não deveria ter lutado com você.
Você me incomoda.
E ainda por cima me enfurece. Você é uma maldição.
Eu não deveria ter feito isso.
Contra você eu não posso.
Eu não deveria ter feito isso.
É preciso ter força, Franz.
Força.
Vá embora!
Vá embora daqui.
Vá. Quero ver outro.
-Não pode vir outro? -Espere.
Logo virá um outro.
Então, quem pode mais agora?
Quem venceu, Franz?
Eu não venci.
Isso eu sei.
Eu não...
venci.
Ele foi o maior cretino do mundo. Entendeu?
Ele me provocou até eu não saber mais se ia ou vinha.
Ida. Que bom que você veio!
As coisas ficaram feias para mim.
Agora estou aqui, em Buch, no manicômio.
Sabe onde é?
Estou em observação.
Quem sabe esteja louco!
Ida Venha aqui.
Não me dê as costas.
O que estará fazendo aqui?
Provavelmente trabalha na cozinha.
-Ou o quê? -Sim...
ela trabalha na cozinha.
Lavando os pratos, beijando a todos.
Sim, mas por que ela se verga assim?
Ela se dobra para um lado como se estivesse com torcicolo?
O que ela tem?
Ela se encolhe como se estivessem batendo nela.
Como se batessem nela. Por Deus!
Não bata nela!
Isso é desumano. Deixe a moça em paz.
Vá embora, deixe a moça em paz.
Meu Deus!
Quem está batendo assim em você?
Fique reta.
Ela sempre se dobra.
Ela não consegue mais ficar reta. Fique reta!
Ida, meu Deus!
Vire-se e olhe para mim.
Quem é que está batendo em você?
Você, Franz.
-Você me matou de pancada. -Não.
Eu não fiz isso. Foi provado pelo Tribunal.
Só fui acusado de lesões corporais.
Eu não tive culpa.
Não diga uma coisa dessas, Ida.
Sim, você me matou.
-Você me matou a pauladas, Franz. -Não!
É melhor morrer de uma vez.
É melhor morrer de uma vez. Isso é insuportável.
Alguém devia me espancar até eu morrer.
Eu não tenho culpa, eu não.
Eu, não! Eu não...
Eu não sabia de nada.
E não se vergue mais, Ida.
Eu estive em Tegel por isso. Cumpri a minha pena.
Chegue mais perto.
Um pouco mais.
Me dê suas mãos.
Mas tire as luvas, Mieze.
Sente-se aqui comigo.
Não seja tão fria, Mieze.
Me dê um beijo.
Fique comigo, Mieze.
Fique comigo. Eu preciso de você.
Você tem que me ajudar.
Eu não posso, Franz.
Estou morta e você sabe disso.
Não vá embora, Mieze.
Fique comigo.
Eu queria tanto...
mas não posso.
Você sabe, Freienwalde.
Você não está com raiva de mim.
Está?
Não fique bravo.
<i>Vamos louvar o que a dor</i> <i>faz a Franz Biberkopf.</i>
<i>Vamos falar da destruição</i> <i>que a dor causa.</i>
<i>Romper, arrasar...</i>
<i>derrubar, dissolver...</i> <i>É isso que ela faz.</i>
<i>Tudo tem o seu tempo.</i>
<i>Tempo de sufocar e curar...</i>
<i>quebrar e construir,</i> <i>chorar e rir...</i>
<i>lamentar e dançar,</i> <i>procurar e perder...</i>
<i>rasgar e fechar.</i>
<i>Agora é a hora</i> <i>de estrangular...</i>
<i>lamentar, procurar e rasgar.</i>
<i>Franz luta e espera</i> <i>pela morte...</i>
<i>pela morte misericordiosa.</i>
<i>Ele pensa que a morte</i> <i>misericordiosa...</i>
<i>e terminal se aproxima.</i>
<i>Nesta hora da noite,</i> <i>morreu Franz Biberkopf...</i>
<i>ex-operário de transportes...</i>
<i>ladrão, cafetão e assassino.</i>
<i>Outro homem está na cama</i> <i>em que ele se deitou antes.</i>
<i>O outro tem os mesmos</i> <i>documentos que Franz...</i>
<i>a mesma aparência...</i>
<i>mas num outro mundo...</i>
<i>ele leva outro nome.</i>
<i>Este foi o naufrágio</i> <i>de Franz Biberkopf...</i>
<i>que eu quis descrever</i> <i>desde sua saída de Tegel...</i>
<i>até o seu fim no hospício</i> <i>no inverno de 1928/<i>29. </i></i>
<i>Agora um relato das</i> <i>primeiras horas e dias...</i>
<i>de uma nova pessoa que tem</i> <i>os mesmos documentos que ele.</i>
TODO COMEÇO É DIFÍCIL. PÁTRIA AMADA, DESCANSE EM PAZ.
ESTOU DE OLHOS ABERTOS. NÃO ME PERMITIREI SER ENGANADO.
A puta Babilônia perdeu.
Ele berrou, ele fez escândalo...
esperneou e gritou. ''O que você quer com ele?
O que quer desse Franz Biberkopf?
Deixe que ele se estrepe.
A morte rufa seu tambor''.
''Não posso ver o que há em seu cálice...
sua hiena'', ele disse.
''Tenho Franz Biberkopf aqui.
Eu o arrebentei todo.
Mas como ele é forte e bom...
ele merece outra vida''.
Então a morte se mexeu...
e seu manto enorme e cinzento tremulou.
E houve gritos, tiros, barulho...
triunfo e júbilo pela morte.
O rio e legiões em marcha...
num frio intenso e vento gelado.
Elas vieram da França para cá...
lideradas pelo grande Napoleão.
O vento sopra, a neve rodopia, há tiros...
O animal empaca e se debate sob a neve.
A vítima é a morte.
Trens rolam, canhões troam, granadas estouram.
Fogo! Pátria amada, fique tranqüila.
Trincheiras soterradas, soldados afundados.
A morte estende seu manto e canta: ''Marchar, marchar.
Vamos à guerra em passos firmes
Com uma banda de cem músicos.
Entardecer, alvorecer, iluminem nosso fim.
Cem tambores tocando: bum bum bum''.
Se não seguirmos em linha reta, seguiremos um caminho tortuoso.
E a morte estende seu manto e canta: ''Ah, sim. Ah, sim.
Vamos para a guerra em passos firmes.
Com uma banda de músicos.
Cem tambores tocando: bum bum bum.
Para uns o caminho é reto, para outros, tortuoso.
Um esta caído, e outro cai''.
''Marchar!
A seis, a dois, a três.
Assim marcha a Revolução Francesa...
a Revolução Russa...
as guerras camponesas...
os anabatistas.
Todos marcham atrás da morte.
Há júbilo atrás dela.
Rumo à liberdade. À liberdade.
Bum! Bum!
Irmãos, rumo ao sol!
À liberdade, à luz superior''.
E a morte estende seu manto e canta: ''Ah, sim! Ah, sim!''.
''Ah, sim! Ah, sim!''.
E o campo murmura: ''Ah, sim! Ah, sim!''
O FRANGO CONSISTE DE SEU EXTERIOR E SEU INTERIOR.
REMOVENDO O EXTERIOR, RESTA O INTERIOR.
REMOVENDO O INTERIOR, RESTA A ALMA.
Sr. Biberkopf...
após a morte de sua namorada Emilie Karsunke...
o senhor ficou com problemas mentais.
Mas segundo os relatórios...
o senhor está recuperado e capaz de depor.
A morta, a quem chamava de Mieze...
tinha, na sua opinião, um caso com o acusado?
Sabe...
éramos bons amigos...
o...
acusado...
e eu.
Mas ele tinha uma mania horrível e anormal...
para com as mulheres.
Por isso aconteceu.
O senhor acha que ele era sádico?
É isso que está tentando dizer?
Se ele era sádico por natureza...
isso eu não sei.
Imagino que Mieze...
resistiu ao Reinhold lá em Freienwalde.
Então...
ele agiu por raiva.
Sabe algo da juventude dele?
Não, Sr. Juiz.
Não o conhecia então.
Ele não lhe contou nada?
Ele bebia?
Sim, a coisa é assim...
antes ele não bebia...
mas no fim, ele começou a beber.
Não sei quanto.
Antigamente...
ele nem suportava um gole de cerveja.
Só bebia refrescos e café.
O Herbert foi preso. Pegou dois anos.
-Me consideraram maluco. -Eu li nos jornais.
Parágrafo 51.
Mas estou fraco, Eva. Afinal...
comida de prisão é comida de prisão.
O bebê na sua barriga...
Não está mais?
O acusado Gottfried Meck...
é inocentado da cumplicidade na morte de Emilie Karsunke.
Reinhold Hoffmann...
é condenado à 1O anos de prisão...
pelo assassinato da prostituta Emilie Karsunke.
Não! Assassino!
O Tribunal decidiu que o crime foi passional.
Lerei agora os autos da acusação.
<i>Ele agora é ajudante de</i> <i>porteiro numa fábrica.</i>
<i>Que destino é esse?</i>
LOGO APÓS O JULGAMENTO...
OFERECERAM A FRANZ...
O CARGO DE AJUDANTE DE PORTEIRO NUMA FÁBRICA.
ELE ACEITOU.
NÃO HÁ MAIS NADA A RELATAR SOBRE SUA VIDA.
<i>Uma coisa é mais forte que eu.</i> <i>Se estivermos a dois...</i>
<i>ficará mais difícil</i> <i>ser mais forte que eu.</i>
<i>Se formos 10,</i> <i>fica ainda mais difícil.</i>
<i>Se formos mil ou um milhão...</i>
<i>aí será quase impossível.</i>
<i>Mas também é melhor</i> <i>estar com outros.</i>
<i>Aí sou capaz de sentir</i> <i>e saber tudo melhor.</i>
<i>Um navio não fica bem preso</i> <i>sem uma grande âncora...</i>
<i>e uma pessoa não pode existir</i> <i>sem a companhia de outras.</i>
<i>O que há de verdade</i> <i>ou falso nisso...</i>
<i>eu saberei melhor agora.</i>
Pátria amada, fique tranqüila.
Estou de olhos abertos.
E não me permitirei ser enganado.
Por isso, verifico tudo.
Quando for a hora...
e eu estiver pronto...
agirei de acordo.
Aos homens foi dado o juízo...
enquanto os bois vivem em rebanhos.
<i>Biberkopf cumpre seu trabalho</i> <i>como ajudante de porteiro.</i>
<i>Ele vê quem entra, quem sai.</i>
<i>Atenção.</i>
<i>Está acontecendo algo no mundo.</i>
<i>O mundo não é feito</i> <i>de açúcar.</i>
Se jogarem bombas de gás, eu sufocarei.
Ninguém sabe por que jogaram...
mas não é preciso saber.
Tivemos tempo para ocupar-nos disso.
<i>Se houver guerra</i> <i>e eles o convocarem...</i>
<i>embora ele não saiba por que,</i> <i>mas mesmo assim haverá guerra...</i>
<i>então ele será culpado.</i> <i>E será bem feito.</i>
<i>Atenção.</i>
<i>Atenção, não estamos sozinhos.</i>
<i>Chuva e granizo pode</i> <i>cair do céu.</i>
<i>Disso não podemos nos defender,</i> <i>mas de outras coisas, podemos.</i>
<i>Ele não vai gritar como antes:</i> <i>''É o destino! É o destino!''.</i>
<i>Não se deve atribuir</i> <i>isso ao destino.</i>
<i>É preciso olhar, tocar...</i>
<i>destruir.</i>
Atenção!
Olhos abertos!
Ficar alerta!
Milhares de pessoas estão na mesma.
Quem não tiver cuidado...
será ridicularizado...
ou abatido.
<i>Os tambores soam</i> <i>atrás dele.</i>
<i>Marchar! Marchar!</i>
<i>Vamos à guerra em passos firmes,</i> <i>100 músicos nos acompanham.</i>
<i>Crepúsculo, alvorada...</i>
<i>iluminam nosso caminho</i> <i>para o fim.</i>
BIBERKOPF É UM FUNCIONÁRIO MEDÍOCRE.
SABEMOS O QUE SABEMOS.
E TIVEMOS QUE PAGAR CARO POR ISSO.